Cão Sem Plumas | Cia de Dança Deborah Colker

“Às margens de um rio que quem sabe dorme” Escrito para o Criticatividade

 

Geo-coreo-poema. Usaria uma dessas palavras compostas, até populares demais hoje em dia (e gratuitas, muitas vezes), não para sugerir que aquilo que “Cão Sem Plumas” faz seja algo de inédito para a dança, mas porque parece, realmente, algo de novo — e de uma proposta profundamente trabalhada, pensada e planejada — para a Companhia de Dança Deborah Colker.

Habituados a encontrar em cena os desenvolvimentos de alta fisicalidade, e a estética quase que clássica, constantemente pomposa, da coreógrafa carioca, aqui nos afundamos em um rio que se esconde em um terreno árido, cobrimos os corpos de lama, e dele saímos molhados, mas com a lama ressecando sobre a pele, misturando o rio e o corpo, craquelando, formando uma crosta que faz — bailarinos e público — levarem consigo o rio, a lama, e o espetáculo.

É essa a imagem que Colker usa para compor sua obra baseada no poema homônimo de João Cabral de Melo Neto. Natural do Recife, e tendo passado diversos momentos da vida fora de sua terra, o poeta carregava consigo a lembrança imagética, que fundamentalmente ilustra um pensamento político sobre a sua terra. Por ele, a imagem é transformada na metáfora do rio Capibaribe, indicativa da situação precária de vida no Recife, de seus extremos e disparidades.

O poema é melódico, rítmico, e trabalha insistentemente por construções curtas e sucessivas, que vão acumulando novos detalhes na formação de suas imagens, que constantemente mesclam os indivíduos ao espaço — de onde vêm, e o qual os constitui. O mesmo propósito íntimo-geográfico de João Cabral é replicado na obra de Colker, em seus dois elementos mais fundamentais: movimentação, e estrutura cênica.

Em comparação com os palcos das últimas obras da companhia, o palco de “Cão Sem Plumas” à primeira vista parece assustadoramente esvaziado. Impressão enganadora: todo o fundo do palco rapidamente se transforma numa imensa tela onde é projetado um filme, realizado por Cláudio Assis e Colker, gravado pelos caminhos do Capibaribe, com os bailarinos da companhia.

Grandiosidade incomensurável: as imagens da tela permitem tanto o plano aberto do macro como a aproximação micro em detalhes mínimos do terreno e dos bailarinos, nos fazendo navegar por um universo que, mesmo sozinho, seria interessante. Frente a essa imensidão visual, se colocam os bailarinos do elenco, com figurinos e maquiagem que dão a impressão de estarem nus e cobertos de lama, se confundindo e se misturando com o rio.

Desde a primeira cena, são observados os novos acentos de Colker, importados de uma pesquisa em danças originais para o grupo, como o Coco, o Jongo, o Samba, o Cavalo-Marinho, o Maracatu, e o Kuduro. O resultado são corpos de torço rígido, trabalhados em dinâmicas de alto e baixo, e em movimentos brutos, que remetem a pedras, a secura, a rigidez, a dificuldade.

Para escapar do isolamento e sobreviver ao que parece uma ameaça (bela, poética, mas ainda sim uma ameaça), os bailarinos constróem corpos coletivos, misturam-se não apenas à cenografia, mas entre si. Convertem-se, aos grupos, em estruturas maiores, que navegam pelo rio, pelo mangue, pelo canavial. Interagem com a imagem projetada com delicadeza e deferência, como se ela fosse água e por ela navegassem.

Em oposição a esses agrupamentos, três criaturas isoladas, limpas, brancas. São três garças que não se misturam aos bailarinos na lama. Representativas de outros desejos que se aplicam sobre o Capibaribe, não só a resistência dos bailarinos-caranguejos, mas também a ganância de uma elite que se aproveita do rio, mas ignora as mazelas que ele atravessa, que serão também trazidas à tona na cena final, em que os caixotes da cenografia de Gringo Cardia se articulam como as palafitas das favelas do Recife, e servem ao mesmo tempo de casa, de habitat, e de prisão para os bailarinos.

Há muito o que olhar em “Cão Sem Plumas”. Os olhos se preenchem pela grandiloquência do video, e continuam sendo provocados por todas as elaborações cênicas e coreográficas. Dado momento, não há mais certeza de se assistimos ao filme ou a coreografia: sua relação é simbiótica. Nem sempre equilibrada — há desmedidas para ambos os lados que chamam, vez e outra, a atenção para si —, mas esse efeito se encaixa primorosamente na proposta desse poema e de sua versão coreográfica: há coisa demais ali, para se ver e para se pensar.

O tamanho do indivíduo frente ao espaço, as possibilidades de cooperação, mas também de indiferença: são esses os temas que transformam o que poderia ser um exemplo local em uma forma de entendimento universalizado. Novo, porque escapa de uma linha de trabalho quase contínua sobre o tema do desejo presente nas últimas criações da companhia. Mas também tradicional, porque espelha uma época e um lugar, e, ainda, atual, porque reflete o agora, em muitos níveis.

Impactante, e não só pelo seu tamanho — tamanho, grandiosidade, aliás, sempre foram marcas de Colker — mas sobretudo pela articulação quase vertiginosa das partes desse todo. Talvez essa articulação pareça excessiva, mas a realidade que ela retrata também é uma realidade de excessos. Algo que, na época da escrita do poema, insistia num tom de algo tão perto, e mesmo assim tão longe, e que, quase 70 anos depois, parece ainda mais distante.

O sucesso da obra é a articulação, fruto de um trabalho longo, de anos, e um investimento de estudo e aplicação de novas fontes que reinventam a movimentação Companhia, ao mesmo tempo em que mantém algumas de suas características de trabalho. A grande distinção, que também parece uma evolução lógica dos trabalhos da coreógrafa, está na dinâmica do espaço. Colker sempre mostrou um interesse em transformar o palco em algo diferente. Aqui, não é exatamente o palco que é transformado no rio, mas a cena que parece nos transportar para o Capibaribe.

Somos levados para esse lugar, e apresentados a sua brutalidade, doçura, insistência e beleza. Viajamos por esse espaço, navegável por poema, trilha sonora, filme, cenografia e movimentação. E ali a geografia se transforma em dança. Um geo-coreo-poema, que não separa onde começa o rio, onde começa a terra, a pele, e o homem. Cobertos de lama, às vezes escondidos, como as margens de um rio que, quem sabe, dorme, nossos contornos são borrados.

 

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Autor: Henrique Rochelle

Professor Colaborador do Departamento de Artes Cênicas da USP, Pós-Doutorando na Escola de Comunicações e Artes da USP, com pesquisa financiada pelo CNPq, Doutor e Mestre em Artes da Cena pela Unicamp, com estágio doutoral na Université Paris 8, e projetos financiados pela FAPESP, é Bacharel em Estudos Literários (Unicamp), e Especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP). Foi Produtor do programa Dança: Encontros Notáveis, da Secretaria de Estado da Cultura (SP), fez parte de equipe de pesquisa na realização dos DVDs de aniversário de 45 anos e do livro de 50 anos do Balé da Cidade de São Paulo, foi supervisor do módulo de Formação Extensiva do PIRAPRODANÇA. Deu aulas de História da Dança na Graduação em Dança da Unicamp e no I Ateliê Internacional da São Paulo Companhia de Dança - com a qual também colaborou com uma centena de verbetes para a enciclopédia Dança em Rede. É Redator da Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira, e colabora com o Portal MUD, onde também é publicada a coluna 3ºsinal, toda 5ª feira.

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